Os bons são a maioria (minha versão)

October 11th, 2023

A temperatura marca 35 graus, e estou caminhando há mais ou menos 8 horas.

Nesse período me perdi, minha água acabou, corri de cachorros, quase pisei em uma cobra, e perdi minha camisa, tendo colocado-a por cima do ombro por causa de tanto suor.

Tenho 18 anos e estou em um devido meio do nada na Espanha. A caminho de Valencia vindo de Barcelona, decidi que queria fazer um hike, e simplesmente parei em um ponto verde qualquer que vi no Google Maps.

Me hospedei em Alcalà de Xivert, vilarejo de poucos mil habitantes. Ali não se fala espanhol, se fala valenciano, e quando cheguei encontrei a cidade vazia, sem nenhuma alma viva na rua. No hostel, perguntei se era feriado. "São duas da tarde", respondeu a senhora.

No dia seguinte a minha chegada, parti para minha caminhada na Serra d'Irta. Dados os perrengues mencionados acima, ao final estava exausto - e parcialmente pelado.

Caminhando então na estrada que sai do parque e leva a Alcossebre (onde iria pegar um ônibus), resolvi aceitar a carona do homem que parou para oferecer, dizendo que morava em Alcossebre.

Nunca tinha pegado carona antes, e, como um brasileiro recém-adulto treinado (leia: com medo), estava alerta, mesmo que não pensava correr perigo.

Não coloquei o cinto de segurança, mantive minha mão próxima à maçaneta, e somente por precaução extra, tirei da minha mochila minha carteira e pus no bolso, porém utilizando da oportunidade para trazer ao bolso também o canivete que carregava comigo.

Conversamos com um pouco de dificuldade mas tudo corria tranquilamente até saírmos do parque. Eu havia mencionado que estava no outro vilarejo, sem descrever exatamente onde, e que iria esperar o ônibus. Porém, quando saímos do parque, o motorista disse que me levaria em casa. Educadamente disse que não precisava, que poderia pegar o ônibus, mas ele insistiu. Aceitei, meio relutantemente. Decidi que iria informar o endereço do restaurante algumas ruas abaixo do meu hostel e caminharia o resto do caminho.

Satisfeito ele então disse: "só vou passar em casa para trocar de roupa antes de irmos".

Vi como na cabeça dele a desculpa fazia sentido, mas estava bem claro que era uma desculpa. O motorista, cujo nome esqueci (ou não guardei), era jardineiro, e estava com roupas sujas do trabalho. Porém a ideia de que era necessário trocar de roupa para dirigir mais vinte minutos não enganava ninguém.

Chegamos em sua casa e ele parou o carro no estacionamento aberto. "Te espero aqui", falei. Ele rejeitou, dizendo algo como "vamos entrar rapidinho para tomar uma água". Sem saber o que fazer, aceitei o convite para entrar. Sentia que ainda conseguiria desescalar a situação caso as coisas piorassem, mas vale dizer que a história contada aqui está bem simplificada, e que houveram várias objeções minhas durante todo o caminho.

Ele entrou primeiro e eu entrei atrás. Lembro vividamente de ter encostado a porta, e que ele veio depois e fechou-a. Ao entrar, me direcionei imediatamente para a varanda. Ele morava no primeiro andar, então decidi que minha rota de escape seria pular da varanda para a grama uns três ou quatro metros abaixo. Sentei com as mãos nos bolsos, segurando meu canivete na mão direita.

Foi então que começaram os avanços. Ao refletir sobre o que aconteceu ali, percebi que tive uma experiência muito similar à vivida por muitas mulheres com certa frequência. Com sorte (e um pouco de astúcia), tive ali um desfecho tranquilo. Disse que estava cansado e que queria voltar para meu hostel, mas que poderíamos nos encontrar outro dia, já que tinha mais três dias na região (na verdade meu trem estava marcado para a manhã seguinte). Passei um nome falso e um número de telefone inventado, e pedi que me deixasse na frente do restaurante.

Foi um susto, mas ao fim não ocorreu nada de ruim. Preferi não ficar para descobrir, mas honestamente penso hoje que o motorista não era uma pessoa violenta, mas sim uma pessoa carente. A maneira como ele me abordou foi certamente intrusa, mas além disso ele não passou de outros limites.

De qualquer maneira, foi essa minha primeira carona.

Peguei emprestado o título desse texto da Mari, que por sua vez pegou emprestado de uma parede no Chile. Não nos conhecíamos, mas, em 2020, quase no mesmo período, estávamos os dois viajando de carona em partes distintas do mundo - ela na Argentina e no Chile e eu em Taiwan.

Queria ter escrito um texto sobre minha viagem lá, mas não escrevi. Ao ler o texto dela, decidi que precisava escrever o meu.

Inicialmente, minha ideia era similar. Queria contar sobre as diversas pessoas que conheci pelo caminho, e como muitas vezes as pessoas vão muito além da carona para te ajudar.

Queria contar sobre como em Taiwan, um casal que me encontrou em um lugar ruim para pedir carona decidiu fazer de sua date night uma viagem de cinco horas para me levar à próxima cidade. Como lá fui também frequentemente presenteado com frutas e almoços, levado para visitar templos, e até participei de uma reunião de trabalho.

Ou como em Torino estava sentado num parque quando um italiano veio puxar conversa e depois de trinta minutos me convidou para jantar com seus amigos na casa dele. E que na Suíça, um senhor de setenta anos achou um jeito de parar o carro em um péssimo lugar para nos levar para a França.

E que no interior do Brasil, peguei carona com o Zé Preto, que independentemente da pistola que portava na cintura, foi super atencioso e me contou sobre a história da região.

Também que na China, em uma história que fica pra outro dia, tive que pedir dinheiro na rua, e rapidamente me ajudaram. Que na Letônia a mulher do caixa não me deixou pagar até que alguém de dentro da loja escaneasse o cartão de fidelidade que me deu 40% de desconto.

Mas resolvi que era importante contar sobre aquela primeira carona também. E que desde então, já peguei dezenas de caronas pelo mundo inteiro.

Porque vale lembrar de que mesmo que tenhamos alguma experiência ruim, julgar o mundo por isso seria um grande erro. Como nunca mais tomar café após aquele primeiro gole amargo de quando éramos crianças.

Pode ser que não sejam todos, mas os bons são a maioria.